Entre textos e inspirações e bell hooks
Uma pessoa comum com dificuldade de escrever coisas com sentido
Nesse novo surto que me invadiu de começar a escrever outras coisas além daquelas que escrevo só para mim, descobri que as palavras ganham vida e tomam rumos inesperados, independente da minha intenção. Outro dia, tive vontade de escrever sobre uma série que eu amo e estou revendo, e o texto estava bem planejado na minha cabeça, era para ser algo leve e divertido, para publicar aqui, mas o texto ficou obscuro e triste, fiquei mal e finalizei o texto de qualquer jeito. Quando digo que finalizei, não é que o texto ficou pronto, eu só abandonei, talvez eu volte nele outra hora, quando eu estiver pronta. Mas tenho certeza de que nunca vou publicá-lo. De certa forma, eu já sabia disso tudo, porque quando escrevo meus pensamentos, as coisas podem ficar bem malucas.
Para quem passa o dia como eu, vendo números em planilhas ou lendo relatórios padronizados ou e-mails falando de problemas em sistemas, pode ser bastante desafiador escrever sobre emoções, filmes, séries, livros ou viagens ou simplesmente escrever sobre algo criativo que passou pela cabeça, fazendo conexões para dar um sentido ao texto. Às vezes, falta inspiração, porque os dias na frente de planilhas são todos iguais. Eu não tenho como falar de forma criativa sobre os ativos e os passivos que eu fico envolvida durante o dia, nem mesmo para o próprio trabalho. Às vezes, a inspiração está aí, mas o cansaço do foco exacerbado nas telas é grande. Tudo que quero fazer no fim do dia é desligar computador e ver alguma série boba ou besteiras no celular, o que considero o grande mal da criatividade e combato com unhas e dentes sempre que resolvo abrir um livro. Às vezes, escrevendo, o texto realmente toma uma direção inesperada, como relatei acima. E acho que nesses casos podem acontecer revelações. Mesmo se o texto tratar de algo triste, podemos entender as situações de outra forma, por mais que a escrita saia de nós mesmos. No livro “Irmãs do Inhame” (uma preciosidade que li para o Clube Teoria Feminista da sensacional professora Dra. Suzana Veiga), ao tratar da espiritualidade no último capítulo, bell hooks inicia falando que:
“...a escrita sempre foi um santuário para mim, um lugar de confissão, onde nada precisava ser escondido ou mantido em segredo. A escrita sempre foi um dos lugares de cura na minha vida”.
Eu nunca tinha visto a escrita como algo espiritual (raramente, vejo qualquer coisa nesse sentido), mas, realmente, escrever parece ser uma das formas mais poderosas de conexão com o nosso interior: é eu comigo mesma. E acho que se eu pudesse voltar no tempo, o conselho que eu me daria seria: “escreva mais e escreva sempre”. Quando eu era adolescente, havia a moda das agendas super descoladas, lotadas de adesivos e escritos que se confundiam com um diário ou algo parecido. Existia também o próprio diário, mas confesso que eu nunca tive muita paciência, além de ter um medinho de escrever alguma coisa supersecreta a respeito do boyzinho da vez ou qualquer outra bobagem, e alguém descobrir (julgando com certa compaixão a Mariana adolescente). Mas das experiências que eu tive com a escrita, aquela que eu mais curtia eram as cartas para as amigas. Mesmo passando o dia com elas no colégio, eu chegava em casa e escrevia. O arrependimento atual é que, com as mudanças de casa, a maioria das cartas se perdeu, devo ter poucas comigo. O que ficou foi a lembrança do divertimento dessa troca de mensagens em cartas escritas com canetas coloridas, falando sobre coisas que provavelmente tratávamos pessoalmente e, ainda assim, esperar ansiosamente as respostas sobre essas mesmas coisas que provavelmente não trariam novidade nenhuma. Saudades, viu...
Lá na década de 1990, a noção de privacidade era um pouco maior. Hoje, tudo é individualizado e compartilhado, muitas pessoas publicam os mais íntimos pensamentos, e isso me choca um pouco. Publicar algo que escrevi, de forma proposital, é um desafio. Como exercício, eu tento escrever mesmo quando não tenho nada a dizer, e quase consigo entender o que bell hooks falou sobre a escrita ser vista como cura. Também acho o ato de escrever importante como uma força de criatividade, para trazer novas perspectivas e olhares sobre o que eu mesma penso. Tentei fazer isso por meio da fotografia, que eu ainda amo, mas a criatividade exigida pela imagem é bastante diferente daquela exigida pelo texto. Não é que uma seja melhor que outra, nem mais fácil ou difícil. Muitas vezes, a imagem é criada de uma forma até preguiçosa, ela é dada e basta capturar, fazer algum ajuste, e pronto, a fotografia está feita, basta ser bonita esteticamente, mesmo quando não expressa o que se quer.
O texto exige um outro esforço. Frequentemente, ao terminar um texto, há certo cansaço, e eu diria até físico. Acho que realmente é algo que pode drenar alguma energia mental. E é por isso que eu imagino que o exercício da escrita acontece principalmente quando algo está tão grande dentro de nós que é preciso extravasar para a única forma possível: o texto. Só que esse algo tão grande dentro de nós precisa vir de algum lugar. Meu pai, por exemplo, escreveu um livro contando suas memórias e histórias da infância na casa da nona dele. Eu, que não tenho tantas peripécias infantis como ele, preciso que algo me incomode ou que surja das minhas profundezas. Como agora, a própria dificuldade de se escrever, ou o que fazer com o resultado do que se escreve, com o que o texto significa para mim. Esse incômodo para escrever também pode vir de uma série de comédia, como The Office, que é a série que estou revendo e me trouxe reflexões tristes pela saída do genial Steve Carell (o amado e odiado Michael Scott); ou algum sonho, ou uma lembrança do passado, ou uma viagem estranha, ou uma fotografia antiga de alguém desconhecido, ou uma reportagem do passado que repete o presente (ou seria o “futuro repetindo o passado”). Tenho ideias para todos esses exemplos que comentei e muitos outros, só que faltam não só palavras, mas organização para tirar da cabeça esses textos.
Lembro com carinho de um texto que escrevi inspirada por minha sobrinha que estava aprendendo a comer abacate: a simplicidade do aprendizado da criança que vira reflexão que tem que sair de mim para virar aprendizado em mim mesma. Entendo que isso é possível quando vivenciamos a nossa comunicação interna na solidão, mesmo não me considerando uma pessoa propriamente espiritualizada. Então, para finalizar esse texto, trago mais uma reflexão de bell hooks, ainda no mesmo capítulo de “Irmãs do Inhame”, a respeito da conexão interna que a solidão pode nos proporcionar. Essa fala dela trata de transformar a solidão em solitude, talvez aí haja um princípio para a cura:
“Tirar um tempo para nos experimentarmos na solitude é uma forma de recuperar um sentimento do divino em que podemos sentir o espírito se movimentando em nossa vida. A solitude é essencial para o espiritual porque nela nós não apenas podemos comungar com os espíritos divinos, mas também ouvir nossa voz interior. Uma forma de transformar o sentimento de solidão que toma algumas de nós é adentrar aquele espaço solitário e encontrar nele uma quietude que nos permite ouvir a voz da nossa alma.”
Que texto delicioso, Mariana. Amei as reflexões sobre a prática da escrita. Como é legal ler outras mulheres e ampliar percepções e olhar sobre a vida. 💫🥰
Mariana, te ler é um deleite. Que poesia das palavras e do seu olhar e reflexões sobre a vida e o que a atravessa. Obrigada por compartilhar. <3